Ela deseja
Ela é difícil de amar. Ela é difícil de ser amada. Ela é complexa na mesma medida em que é simples. Quer muito e não quer nada. Muda de humor, de temperamento, de amor. Ela só quer a parte boa, foi o que disse. A parte boa? É o que sempre ouve em seguida. Sim! A parte boa. Para se viver a parte boa, não há motivos para esconder a parte menos boa. Simplesmente há como aprender a lidar com ambas. Cada um cuidar de suas partes de forma independente e unida. Quando um cuida de si e o outro cuida do outro, ambos cuidam de ambos. A matemática é simples. Para existir o nós é preciso que exista o eu e o você. E tudo isso o faz tão difícil de amar. E tão difícil de ser amada. Quem é que tem disposição para aprender a lidar consigo mesmo? Ela tem. Ela tem e muita. Diríamos que é o que ela mais tem feito desde o dia em que descobriu que não existia. Sabia que um dia ela descobriu que não existia? Pois bem, ela descobriu. E foi uma grande surpresa. Ela passou anos, muitos anos existindo para todo mundo: filho, família, amigos, trabalho, terapeutas, conhecidos, casos, namorados, maridos e todos os seus ex. Ela existia para todos eles. Não havia uma atitude sequer que não era para eles, cada um em seu momento, às vezes mais de um, e, outras vezes, todo mundo junto. Os ex ocupavam um tamanho enorme em sua existência, porque ela procurava entender seus erros a partir do ponto de vista deles. Estudava minuciosamente todas as acusações que já ouvira. Questionava a si, analisava cada fala com precisão cirúrgica. Pagava suas terapias para falar deles e do que diziam sobre ela. Quase tudo o que fazia era em função deles. E eles não paravam de crescer. Sempre tinha um ex. Sempre tem um ex. Para ela, nada é para sempre. Mas um dia ela conheceu uma nova pessoa. A primeira impressão foi de um monstrinho construído em várias partes, com membros, tronco e cabeça desproporcionais, tal qual a criação de Mary Shelley. Mas com o tempo, o corpo foi tomando forma, foi se sentindo confortável com os novos encaixes. Os músculos, nervos, veias, pele foram se incorporando e absorvendo as costuras de suas partes até se tornarem uma coisa só. Foi nesse momento que ela descobriu que não existia e assim, iniciou o processo de descobrir-se. Foi desse jeito que ela compreendeu que estava cuidando de si, que tinha disponibilidade o suficiente para aprender a lidar consigo mesma. E assim foi construindo pontes e mais pontes entre seus desejos e seus comportamentos. E nesse processo de construção, muitas pedras não se encaixaram e rolaram no despenhadeiro. E nesse processo de construção, ela se deu conta do tamanho do abismo que se abria sob seus pés. E nesse processo de construção, foi que ela conseguiu enxergar que havia um outro lugar para se chegar. E nesse processo de construção, que ela descobriu que existia um lado de lá. O lado de lá é tão assustador. Não há notícia alguma sobre o que pode ser encontrado. Não há mapa. Não há roteiro. Não há preparo. Mas ela tinha registros. Ela tem registros. Ela sabe que pode ir do lado de lá. Ela constrói a ponte e dá um passo. Ela aumenta um tanto e dá outro passo. Ela coloca mais concreto e outro passo. E assim ela tem seguido, caminhando em sua ponte a medida em que vai sendo construída. Consegue imaginar o trabalho que isso dá? Tem a dimensão do tanto de dedicação que é preciso para viver todo esse processo? E depois dessa descoberta? E depois de saber de sua própria existência? Depois de compreender que ela pode existir e todas as outras pessoas continuam existindo também. Como que ela pode aceitar um pouco amor? Como alguém com pouco amor pode ousar amá-la? Não pode. Não pode. Não pode. Hoje ela existe por si. Hoje ela quer alguém que exista por si. Ela quer alguém? Há que se ter intenção de existir. Há que olhar a lua e reconhecer o tamanho de sua insignificância. Há que se olhar o mundo e reconhecer que se é parte do todo. Há que saber amar para amá-la. Há que se amar para amá-la. Ela quer saber amar para amar. Será que ela já sabe amar? “Eu te amo e nem sei por quê. Mas eu sei por que. Eu te amo. Eu não sei por que. Te amo. Sem por quê. Só te amo. E não precisa de porquês”. Ela escreveu esses versos no verso do Vento Vazio. E o Vazio nunca foi embora, nem vai. O Vazio fica aqui, bem dentrinho das nossas cabeças. E tem espaço dentro do vazio que ela se abriu. Tem espaço ocupado pelo vento. Ocupado pela brisa. Ocupado pelo leve. Ocupado pelo sussurro. Ocupado pelo toque sutil. Ocupado pelo olhar demorado. Ocupado. Tem espaço. Esse espaço não é pra ninguém. O espaço dela é só dela. Mas ela convida. Ela sugere. Ela arruma a mesa. Ela espera. Ela se atira. Ela se movimenta. Ela ainda não sabia de sua própria existência e era totalmente preenchida. Ela soube de sua própria existência e está totalmente vazia. Ela é só. Ela é muito só. Ela raramente está só. Ela quer ficar só. Ela tem medo. Ela tem inseguranças. Ela tem desejos. Ela não sabe sobre seus desejos. Mas ela deseja. Deseja muito. Agora mesmo ela deseja poder tocar a lua vermelha que esconde por trás dos prédios e das luzes e das nuvens e da névoa de sua janela ela deseja tocar a lua vermelha se foi se escondeu. Mas seus desejos não. Eles continuam. Eles aumentam. Eles permanecem. Ela é difícil de amar. Ela é difícil de ser amada. Ela deseja amar. Ela deseja ser amada. Ela deseja não deixar de se amar. Ela deseja.
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