Bailarina feliz
Ela é um verme. Ele é um material em decomposição. Eles não sabem que isso é o que os conecta. Ela deseja ser uma borboleta. Ele deseja ser uma joia rara. Eles não sabem que isso é o que os conecta. Ela sente que tem algo errado entre eles, mas não consegue identificar. Cada vez que ele se mexe e exala um cheiro pútrido, ela se movimenta mais, contorce seu corpo cheio de ondas, anda sem saber onde fica o pé e a cabeça, abre sua boca enorme e começa a arrancar lentamente pedacinhos desse material mole e fedido. E ela chora. Ela come e ela chora. Ela sofre. Ela não quer ser um verme, mas o é. Não há pior sensação do que não se sentir o que é. Se olhar no espelho e não ver a realidade. Não pertencer. Mas ela o olha e enxerga uma joia rara sem lapidação e começa a come-lo ferozmente na tentativa de lapidá-lo. Ele não quer ser comido, devorado e nem ter seus pedaços arrancados. Ele não enxerga em si a necessidade de ser lapidado. Ele é joia rara e bruta e é isso que o faz se sentir pertencente, mesmo que esteja em decomposição. Ele não sente seu próprio cheiro podre. Ele é joia rara e bruta. Ela não. Ela não é joia rara, ela não é bruta, ela não é verme. Ela sente isso. Ela entende isso. Ela intui isso. Mas ela não se enxerga, ela desvê. Ela cega. Ela foge. Ouviu dizer que é uma larva e não um verme. Mas larvas não são vermes? Nem todas as larvas se alimentam de carne em decomposição. Muitas se alimentam de vegetais. E tem aquelas que se alimentam de vegetais vivos, frescos, suculentos e apetitosos. Mas tanto os vermes quanto as larvas são parasitas. Tudo o que há na terra é parasita de alguma coisa. Essa é uma relação intrínseca a tudo o que é vivo. Tem sempre algo grudando em outro algo e se alimentando dessa energia vital. E isso não é algo ruim. É o ciclo, é a garantia da espécie. Mas é sabido que quando um se alimenta mais do que o outro pode oferecer, ambos adoecem. Um pelo excesso, outro pela escassez. Até os parasitas precisam de equilíbrio. Ela tem absorvido todo esse conhecimento. Ela tem começado a sonhar que é uma larva. Ela tem desejado ser uma larva. Ela não sabe como é ser uma larva para além do que ouve e lê. Ela ainda não se sente uma larva, mas ela deseja ser uma larva. Disseram que larvas, todas elas, passam por um processo de transformação. Tem varias historias, poemas e muitos romances escritos sobre isso. Tem um que ficou famoso que ela também leu. Se chama A metamorfose. E começa assim, mais ou menos como ela começou: um dia acorda e se sente um inseto. E sabemos que todo inseto um dia foi uma larva. No livro ele conta detalhes sobre a transformação em seu corpo, sobre a dificuldade de se locomover carregando uma carcaça pesada e sobre o tamanho das coisas ao seu redor, que de repente, ficaram enormes. Quando ele compreende o que lhe aconteceu, dá-se conta de que se tornou um inseto repugnante e que não serve para nada. Esse é o medo dela. Se ela for mesmo uma larva, que tipo de ser vai se transformar? Um ser repugnante, digno de ser destruída com uma chinelada ou um spray mortífero? Quais outros tipos de larvas existem e quais as possibilidades de transformação? Ela foi pesquisar: larvas de invertebrados, larvas de insetos, larvas de vermes e larvas parasitas de animais. Uau, tudo isso?! E ela que pensava que larvas e vermes fossem coisas distintas! E continuou pesquisando: as larvas de invertebrados tem um papel importante na dispersão e colonização das espécies. As larvas de insetos podem ser borboletas, mariposas, abelhas, escaravelhos, vaga-lumes e outros que ela não sabe dizer o nome. Bem, as larvas de vermes e de parasitas de animais, esses ela conhece bem. Mas ela gostou da historia de que as larvas perpetuam as especies e de que os insetos que as derivam podem ser borboletas, mariposas e joaninhas. Ahhhh, as joaninhas, tão pequenas e tão bonitinhas. Ela adoraria ser uma joaninha. Elas são bonitas, admiradas, pequeninas, voam, veem a vida do alto e são predadoras, realizando um belo controle de pragas, promovendo um equilíbrio da natureza. É isso! Ela deseja ser uma joaninha! Poderia ser também uma borboleta, polinizando e distribuindo no mundo sementes que darão frutos. Ah, ela adoraria ser uma borboleta. E agora, observando bem, ela se deu conta de que, após um período de dor e de desejo de fazer algo diferente em sua vida, tatuou uma borboleta em seu corpinho molenga e anelado. Depois, em um outro momento de alegria em sua vida, fez uma outra tatuagem de joaninha do outro lado de seu corpinho molenga e anelado. Ela não fazia ideia de todos esses significados, mas escolheu esses insetos porque achou bonito e descobriu que tem uma simbologia de prosperidade e de transformação. TRANS-FOR-MA-ÇÃO. Olha aí! Estava aí o tempo todo e ela não conseguia enxergar! Pronto, agora que ela sabia, estava tudo resolvido. Ela sabia que a transformação aconteceria e era só uma questão de tempo, de processo, como dizem alguns. Parece que tem uns estágios para essa transformação acontecer, mas ela acontece. Desde que ninguém venha a destruir, ela acontece. Mas acontece que ela sabe que tem alguém que pode destruí-la. Ela sabe disso. A joia que é rara e bruta. Ela murcha, entristece e volta a enxergar o verme de antes. Ela enxerga a joia rara e bruta e ela sabe que realmente é uma joia rara e bruta, mas ele fede, ele apodrece, ele escurece, ele molenga mais e mais. O cheiro dele é tão forte, tão enebriante. Enquanto ela se vê como um verme, esse cheiro a atrai. E ela chora, sofre e morde mais um pouquinho desse material em decomposição. Mas agora ela sabe que é uma larva e tem uma esperança imensa de ser uma larva de inseto, de levar vida e beleza no mundo, de ser considera sorte todas as vezes que pousar em alguem, de ser a alegria das crianças, de andar na ponta de suas patinhas minusculas, como uma bailarina, girando e abrindo suas asinhas vermelhas com pontinhas pretas, fazendo pequenas cócegas na pele daqueles que arriscam tocá-la. E quem a toca, sabe que é preciso delicadeza, é preciso cuidado, tem que falar baixo e leve, porque ela é tao sutil que pode voar com um simples sopro. Há que susurrar ao falar com uma joaninha, há que ter toques suaves, há que gostar de receber cócegas quando ela bailar. Há que se respeitar quando ela decidir voar. Seus voos são rasos e não são constantes. Ela precisa fazer paradas de tempos em tempos, caminhar lentamente, abrir suas asas e se acomodar em algum lugar. Depois ela voa de novo. Porque ela precisa sentir a alegria que sentem sempre que alguem a encontra. “É bom presságio!”, dizem eles. “É sorte!”, dizem eles. Ela ficou sabendo que tem até um desenho que ficou muito famoso, chamado “Lady Bug”, muito fofo, e que a criançada começou a se vestir como ela, a usar fantasias de joaninha. E nesse desenho ela é uma heroína. Tudo o que ela deseja ser. Definitivamente, ela é uma joaninha. Mas e a joia rara e bruta? Uma joaninha não tem como lapidá-la. Uma joaninha não fica comendo material em decomposição. Ela se alimenta de nectar e nectar é doce, suculento e apetitoso. A joaninha tem uma ideia: e se ela deixar o tal processo acontecer? Mas pra isso, ela vai precisar se distanciar um pouco do material em decomposição. Essa é a parte difícil pra ela, pois sabe que ele gosta de suas mordidinhas pequeninas, ele se sente importante sendo o alimento de sua imagem de verme. Quando ela se alimenta dele, ele se sente util, necessário, importante. Ele não se sente um material em decomposição. Ele se sente uma joia rara e bruta. E por isso não percebe que fede, que tem gosto ruim e que faz mal. Ela também não entendia porque ficava doente todas as vezes que se alimentava dele, porque se ela é um verme, vermes se alimentam de material em decomposição. Mas agora que ela descobriu que é uma larva de inseto, começou a entender porque ficava tão doente. Ela estava se alimentando errado. Ela estava comendo aquilo que não é de sua natureza. Mas ela comeu tanto que até se acostumou. Achou que as nauseas e as enxaquecas poderiam ser apenas por ter comido demais – por isso, às vezes, precisava se afastar dele, para dar tempo dessa difícil digestão acontecer, mas sempre que sentia fome, lá estavam eles juntos novamente. Mas agora ela descobriu que é uma larva de inseto, uma larva de joaninha, que leva alegria e sorte pelo mundo. Ela pode voar, ainda que sejam voos curtos. Ela pode ver de cima. Disseram que pra ela virar uma joaninha de fato, precisa entrar em sua casa, sua propria casa. Mas ela não tem uma casa ainda. E como se constrói uma casa, joaninha? A larva precisa entrar em repouso depois de tanto se alimentar. Bem, ela, enquanto larva, já está bem alimentada pela joia rara e bruta que é um material em decomposição. Então agora, só resta repousar e deixar que a casa seja construída ao seu redor. A ciencia chama essa casa de pupa. A pupa não se mexe. Ela começa a ser construída e tem suas paredes branquinhas, branquinhas. Daí ela começa a mudar de cor conforme amadurece. E quando amadurece, a larva que estava quietinha lá dentro, eclode e sai uma joaninha linda, voadora, bailarina feliz. Ela entende que agora é hora de aquietar para a pupa se formar. Não há outra forma de se tornar joaninha, a bailarina, se não for por essa tal de metamorfose.
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