Fim da Parte I
“O nosso amor a gente inventa
Pra se distrair
E quando acaba a gente pensa
Que ele nunca existiu”
Quais violências uma mulher se permite? Uma mulher se permite ser violentada? Essa responsabilidade é da mulher? Ou seria uma culpa? A mulher é a grande motivadora das situações violentas que sofre? Se é ela quem sofre, como ela pode ser a responsável? Seria a violência sofrida um ato masoquista?
Se a
cada 24 horas, pelo menos oito mulheres foram vítimas de violência doméstica,
se a economia do
cuidado consome, em média, mais de 61 horas semanais, se temos 47,8
milhões de mulheres inseridas no mercado de trabalho, estando ocupadas por
cerca de 8 horas diárias, fora o deslocamento, fico aqui pensando qual tempo
que sobre para que a mulher consiga pensar em provocar uma situação que a coloque
no papel de vítima de violência.
Quando falamos de violência contra
mulher, a primeira imagem que vem à mente de qualquer pessoa é de violência
física, de uma pessoa machucada, com escoriações, cortes, sangue, desfigurada ou,
em última instancia, morta. Mas o cotidiano é feito de microviolências, algumas
que são consideradas, até mesmo, atos de amor (na verdade, a maioria vem com
esse argumento à tira colo).
Hoje eu assisti uma missa católica.
E dei azar de ir em um dia em que a leitura dizia o seguinte:
Primeira Leitura (Ef 5,21-33).
Leitura da Carta de São Paulo aos Efésios.
Irmãos, vós, que temeis
a cristo, sede solícitos uns para com os outros. As mulheres sejam
submissas aos seus maridos como ao Senhor. Pois o marido é a cabeça da
mulher, do mesmo modo que Cristo é a cabeça da Igreja, ele, o Salvador do seu
Corpo. Mas como a Igreja é solícita por Cristo, sejam as mulheres
solícitas em tudo pelos seus maridos.
Minha reação foi de espanto e de
negação. Discordo veementemente deste conteúdo e não há interpretação que me faça
aceitar que isso tenha uma intenção boa. Conforme eu ouvia a tal leitura,
só pensava nas pessoas mais humildes, que entregam suas vidas aos dogmas, colocando
nos livros sagrados todas as diretrizes que guiam suas atitudes,
sejam elas na posição do agressor, sejam elas na posição dos agredidos. Que
discernimento essas pessoas, oprimidas pela sociedade desigual, terão de que não
é saudável nenhuma posição, nem metafórica, sobre poder na relação de gênero,
na relação amorosa, nas relações interpessoais? Estou até agora pensando na
quantidade de mulher violentada mundo afora, seja em palavras, seja
fisicamente, pautadas por esse tipo de escritura? Senti vontade de chorar,
senti um vazio no peito por uma descrença na humanidade, um misto de tristeza
com incapacidade de mudar o percurso da nossa autodestruição. Eu sei que todas
as religiões e dogmas são absurdamente carregados de violência de gênero e essa
é umas das coisas que todas elas tem em comum.
Mas eu comecei esse texto falando
sobre violência, porque eu fui vítima de uma nos últimos dias. Uma violência que
poderia ter passado despercebida por mim, como já passou tantas vezes. Eu sofri
uma violência verbal. E não foi a primeira vez. Mas foi a primeira vez que eu
reagi contra o agressor. E eu senti um tanto de raiva, um tanto de medo, um
tanto de decepção, um tanto de frustração, um tanto de alegria por ter tido,
finalmente, a coragem de reagir a algo que eu já havia sofrido outras vezes,
que havia me incomodado de forma absurda, mas que eu ainda relevava, tal qual
os ensinamentos bíblicos acima. De forma inconsciente, alguma coisa em mim, que
posso chamar de culpa católica enraizada contra minha vontade, me fazia
relevar, me fazia não dar tanta importância e me fazia desculpar, ao ponto de
compreender que a agressão do opressor tem origem em problemas pessoais e que
me agredir era apenas porque sou a pessoa mais próxima e que dá mais atenção e
que o faz se sentir à vontade.
É isso! Ele se sentiu à vontade
para agredir, para ME agredir. Mesmo que tudo isso seja totalmente contra a MINHA
vontade. Mas dessa vez eu reagi. Dessa vez eu parei. Fiz o símbolo de alerta sobre violência
contra mulher para mim mesma e dei um basta. Assim que sofri a agressão e
reagi, meu coração acelerou, eu levantei bruscamente, fiquei olhando para o teto
desacreditada no que estava acontecendo, lágrimas escorreram pelo meu rosto,
uma tristeza profunda preencheu meu peito e eu só pensei nas minhas amigas.
Passei um escâner mental pensando em qual delas poderia estar minimamente disponível
para eu conversar, pois eu precisava avisa-las que me encontrava em perigo e
que precisa de qualquer uma delas pra me ajudar a me manter firme, a sustentar
minha atitude. Encontrei a amiga que, mesmo não estando disponível no momento,
me senti confortável em contar o que tinha acontecido e fui muita clara no
pedido que fiz a ela: “Preciso que vc seja dura e firme comigo quando
perceber que estou saindo do combinado comigo”.
Eu fiz esse pedido em profundo desespero, porque eu sei que tem uma fragilidade aqui ainda que pode me fazer “cair em tentação” e “perdoar” o agressor, como tantas vezes eu já tinha feito. Ao terminar de escrever para essa amiga, senti um alivio enorme, senti que estava segura e protegida de mim mesma. Me senti bem ao perceber que eu tenho a quem recorrer, que tenho rede de apoio, que tenho como me sentir segura e acolhida.
Essa noite foi muito difícil dormir.
Não usei nenhum tipo de medicamento, simplesmente, comecei a conversar em voz
alta comigo mesma, para me ouvir, sobre o que eu não ia mais permitir viver,
sobre como eu estava me sentindo triste, porém, fortalecida para parar
o agressor, definitivamente. Consegui dormir no meio da madrugada e fui
presenteada com um sonho bom, leve e que eu me senti muito amada. Acordei
cansada, mas satisfeita por conseguir compreender que meu inconsciente me mandou
um “vai ficar tudo bem” por meio do sonho gostoso. Isso me acalentou.
Mesmo eu tendo plena consciência de
que sofri agressão, que reagi, que o resultado foi bom pra mim, me pego
pensando, em alguns momentos, que eu que deixei chegar nesse ponto. E sinto
vergonha de mim mesma. E sinto raiva de mim mesma. E sinto uma autopiedade. E
sinto uma vontade imensa de ser abraçada. E de chorar copiosamente, até que meu
corpo seque dessa água amarga que toda mulher carrega na estrutura patriarcal.
Fim da Parte I
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