Calmaria I Marolinha

Essa é a magia da maturidade: a gente para de nadar contra a corrente e aprende a surfar nas ondas grandes. Disse isso pra uma amiga hoje cedo sobre uma situação que ela está vivendo e, no mesmo instante, eu mesma me ouvi. Acontece muito disso com vocês? Falar algo pra alguém e no mesmo instante, por milésimos de segundos, parece que tudo fica suspenso e você percebe que disse aquilo para si mesma, como se fosse uma outra pessoa dentro de você soltando tais palavras?

Comigo acontece muito. Penso que tenho ouvido muito mais as vozes da minha cabeça e isso tem sido bem bom pra mim. Minha cabeça anda numa fase boa e diminuído muito os pensamentos paranoicos, então agora consigo ouvi-la como se eu estivesse numa marolinha, aquela coisa gostosa que a gente bóia, que a gente se sente flutuando calmamente. É muito louco pensar que no meio de tanta confusão, desastres e problemas globais, nosso interior está relativamente calmo. E nem é fruto de meditação, religião ou qualquer entorpecente, é simplesmente estar em paz.

“É, morena, tá tudo bem
Sereno é quem tem
A paz de estar em par com Deus”

E eu também acho que é muito doida essa sensação de se sentir em paz e ao mesmo tempo estar atenta a tudo o que acontece ao redor. Atenta e não mais em alerta.

De uns anos pra cá (óbvio que depois de um tempão no papel de analisada) tenho me sentido menos no estado de alerta, sem ter aquela sensação de que o mundo vai desabar a qualquer momento. Até poucos meses ainda vivia uma situação que me deixava assim e isso estava me consumindo. Era como se eu tivesse conseguido tirar todas as tais “bandeiras vermelhas” da minha vida, mas ainda havia uma que me pegava dia-sim-dia-não e, outra obviedade, não era minha.

Foi tão difícil dizer: “toma, essa bandeira vermelha não é minha e eu não consigo mais cuidar dela. Para que eu funcione bem, será preciso que você assuma inteiramente esses cuidados e, se um dia essa bandeira ficar verde, será uma alegria segurar essa haste junto”. Ainda é muito difícil soltar um problema que não é meu. Fico com a sensação de que não estou sendo amiga, parceira, leal, mas a real é que cheguei naquele ponto em que se eu não deixar claro os meus limites para mim mesma, não vou aguentar e vou explodir.

Acontece que a vida, embora seja uma grande magia, não acontece num passe de mágica e, desde que entreguei essa última bandeira vermelha a quem é de direito, sinto um incômodo imenso, um vazio, um luto. Tem tristeza, tem insegurança, tem raiva, tem melancolia, tem alegria, tem liberdade, tem euforia. Porque deixar de abraçar problemas – principalmente os que não são nossos – é abrir espaço para qualquer outra coisa nova chegar, e a primeira coisa que chegou aqui foi a bendita calmaria, a marolinha gostosa que falei anteriormente.

Não sei se alguém já se deparou com isso (certamente sim), mas lidar com a calmaria exige da gente um “não fazer”, um descanso e um ócio que não estamos acostumadas, principalmente, em se tratando de mulher. E aí a gente se depara com um outro monstro da sociedade moderna: o tédio. Gente, alguém aqui já flertou com o tédio? Que monstro absurdamente bizarro! Vivemos em uma sociedade que trata o tedio como pecado e como crime. Ficar à toa é coisa de gente que não presta. Se não estivermos fazendo alguma coisa produtiva, que gere negócios ou dinheiro, não servimos para nada. Podemos ser cancelados. E eu nem tô aqui falando de muitos herdeiros que não precisam fazer nada e ainda assim tem tudo, eu tô falando daquele tedio temporário, sabe? Não podemos! Não é bem aceito! Não vamos para o céu!

Fato é que ficar cara-a-cara com o tédio é de fato assustador. A sensação de chegar em casa depois de um longo dia de trabalho e poder escolher entre dormir, ver um filme que não precisa ensinar nada, ler um livro sem grifar partes relevantes, rolar a tela e rir de memes bobos, fechar os olhos e cochilar no sofá, sem se preocupar se tem algo pra comer, se tem roupa pra lavar, se tem pó nos móveis, se o filho já chegou e está seguro, se as plantas estão aguadas, se o lixo não está lotado... gente, isso é de enlouquecer. Eu conheço muita gente que não quer nem chegar perto de momentos como esse, porque tem medo de sucumbir.

E aí que eu tenho encarado o tédio de frente. Às vezes me escondo sob os lençóis, às vezes fujo dele no meio de um bom e barulhento samba, outras vezes encaro uma faxina pesada só pra fingir que ele não está por perto, mas ele tá lá, tá aqui, neste momento, agora. Eu tô me preparando pra trocar uma ideia com ele, papo direto, real e objetivo, bem no estilo “Pergunte pra ela”. Porque eu sou muito curiosa e quero saber o que tem do lado de lá do tedio. Porque ele é tão assustador, embora pareça tão necessário? Como é que podemos ter uma relação bacana entre a gente, sem cair numa depressão e sem entrarmos no hiperfoco? Como aproveitar a marolinha e, ao mesmo tempo, estar preparada para os momentos de tormenta em alto mar?

Se eu conseguir trocar essa ideia com ele, volto aqui pra contar. Por enquanto, como não estou encontrando uma forma de fechar esse texto com alguma coerência, vou terminar com a música do Los Hermano que ficou cantarolando o tempo todo na minha cabeça. Quem sabe esse é o fechamento que devo estar atenta, não é mesmo?!

É, morena, tá tudo bem
Sereno é quem tem
A paz de estar em par com Deus
Pode rir agora
Que o fio da maldade se enrola

Pra nós todo o amor do mundo
Pra eles, o outro lado
Eu digo mal-me-quer
Ninguém escapa o peso de viver assim

Ser assim, eu não
Prefiro assim com você
Juntinho, sem caber de imaginar
Até o fim raiar

 

 

 

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