Viver


Ela sabe que viver é para fora. Ela sabe que viver dá trabalho. Ela passou tanto tempo imersa em si que acreditou que isso era o viver. Vivia em seus pensamentos, vivia nos pensamentos dos outros, vivia histórias que não eram suas e pensava estar vivendo. E ela vivia. A profundidade de seus incômodos a envolvia em um vazio, fazendo-a sentir que lhe faltava uma parte de si mesma. Faltava o que? Indagava-se. Ela não sabia. O que tanto me falta? Perguntava-se com frequência. Faltava. Ela faltava. Tudo faltava. Mas ela vivia e acreditava que vivia. Viver dá trabalho. Viver dá muito trabalho. Ela não estava disposta a ter tanto trabalho. Ela estava exausta vivendo outras histórias. Outras dores. Outras necessidades. Outras demandas. Ela queria se livrar de tudo isso e ficar em profundo silêncio. Ela lia. Lia tanto que chegava a acreditar que sua vida era como a de cada personagem que conhecia. Ela queria ser todas essas personagens. Viver suas vidas, conhecer seus lugares. Sentir o que sentiam. Ela queria uma vida diferente da que tinha. Ela queria viver. Não sabia como. Ela também se fartou de viver vidas fictícias. Ela começou a prestar atenção em sua própria vida. O que ela fazia? Como ela vivia? Como gostaria de viver? Ela ensimesmou. Mergulhou em si. Ela queria voltar a ser raiz. Fungo. Terra. Ela se dispôs a viver e viver e viver. Quando ela vive ela produz mais das coisas que não tem preço. Viver. Sentir. Comer. Ela se questionou. Ela sentia fome. O vazio era fome. Fome de quê? Fome para quê? Ela passou a pensar na vida que faltava. Na fome que precisava ser suprida. Ela come a vida. Ela está faminta. Ela é um animal. Irracional. Selvagem. Feroz. Com cheiro de terra úmida. E ela devora os desejos. Ela não sabe o que são desejos. Ela lambe os dedos nas conquistas. Limpa a boca na manga da camisa. Ela vive sem saber que isso é viver. Ela percebe que quando ela vive o tempo voa acelera e ganha uma força estranha. O tempo é insaciável. O desejo é insaciável. A fome é insaciável. Quando ela vive, a vida se modifica. Amplifica. Tem horizonte. Uma paisagem surge em seguida da outra. Pessoas chegam. Pessoas saem. Ela vive. Ela devora tudo isso. Ela se entrega. Ela arrepia. Os espaços antes vazios continuam vazios. Eles permanecem. Mas eles não somem. Os espaços se ampliam e comportam um mundaréu de Elas. Todas Elas dialogam entre si. Convivem, dividem e compartilham tudo o que sentem. Ela sabe que viver dá trabalho. E ela anseia por isso.

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